O MViva!, espaço aberto, independente, progressista e democrático, que pretende tornar-se um fórum permanente de ideias e discussões, onde assuntos relacionados a conjuntura política, arte, cultura, meio ambiente, ética e outros, sejam a expressão consciente de todos aqueles simpatizantes, militantes, estudantes e trabalhadores que acreditam e reconhecem-se coadjuvantes na construção de um mundo novo da vanguarda de um socialismo moderno e humanista.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A MATRIARCA (da série 'Estória de domingo')


Nunca voltamos. Os lugares mudam todos os dias, como também mudamos. As lágrimas cavam rugas em nosso rosto e as chuvas abrem feridas na paisagem de nossa infância; assim como nós, as casas e as ruas, as árvores e os jardins, estão sempre mudando, porque o tempo as conduz nesse êxodo rumo ao nada, mais próximo de nós, menos próximo das pedras e riachos, das montanhas e rios, que duram muito mais do que a efêmera carne que nos veste a alma.
              Mas se não voltamos ao mesmo lugar, posto que o lugar é sempre outro, voltamos na geografia, em busca do tempo perdido, se posso plagiar Proust. Foi assim que retornei em vão ao velho Pouso do Marimbondo, em que descansavam, no século 18, os tropeiros e seus burros. Como o comércio crescesse e se amiudassem as viagens, uma mulher da vida decidiu levantar ali seu rancho, e servir cachaça e consolo aos passantes. No princípio era só isso. Os próprios tropeiros armavam  trempes e redes, cozinhavam  feijão com charque, roncavam feito bichos, enquanto os burros zurravam. Era de sua promessa a Nossa Senhora que, tirante os deveres de seu ofício, dormiria só, e, só, dormia.
              Com o tempo, surgiram outras raparigas, mais jovens, que ergueram também os seus barracos. De vez em quando uma se emprenhava e paria, como ela mesma, mãe de quatro ou cinco,  e era difícil identificar os pais, sempre esquivos, posto que todos de mulher fixa longe dali, e dinheiro miúdo. E o Pouso do Marimbondo se transformou em patrimônio, com capela devotada a Santa Maria Madalena, como era de seu direito, e depois em distrito, na balbúrdia daquela promiscuidade.
              Ali, em cidade crescida,  passei a infância, descendente longínquo daquela pioneira, sem saber de que linhagem procedia; se dos morenos abugrados, se dos portugueses temperados de mestiçagem. Quando fiquei rapazola, meu pai, ficando viúvo, demandou outros destinos, e de lá saí, montando jumentinha castanha, isso faz muito mais de meio século. Voltei, pensando em comprar fazenda,   faz alguns meses. Na prefeitura me deram um folheto sobre o município: “Pouso do Marimbondo foi criado por bandeirantes que combateram os bugres, e aqui construíram um forte. Chamou-se Pouso do Marimbondo porque o chefe da bandeira, Manuel Lopes Salgado, nobre português de Trás-os-Montes, que estava acompanhado de sua mulher, foi picado por um marimbondo-cavalo, quando levantou a sua primeira casa de pedra, cujas ruínas podem ser vistas à margem do riacho, na praça central”. Vi o que ficara do tugúrio de Chiquinha Dengosa, a esquecida e solidária matriarca da cidade hipócrita e ingrata.     E parti de novo, para nunca mais voltar.              


Postado por Mauro Santayana

Nenhum comentário:

Postar um comentário