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domingo, 13 de maio de 2012

AS REVOLTAS NO FRONT AMAZÔNICO




Por Lúcio Flávio Pinto

Foi sob o tacão do general gaúcho Emílio Garrastazu Médici o pior período do regime militar, os anos verdadeiramente de chumbo, entre 1969 e 1974. Sempre de óculos escuros, cara fechada e um cigarro pendente dos lábios, o ex-chefe do temido Serviço Nacional de Informações era a expressão da estampa do típico ditador latino-americano. 
Não chegava a ser pessoalmente mau. Só que tinha um defeito terrível: o da omissão.
Durante o tempo em que o general Médici foi o presidente da república, os porões da ditadura ecoaram os gritos provocados pelas torturas impostas aos inimigos do regime. Indiferente a essa selvageria, Médici ia ao campo de futebol.
Sempre com um radinho de pilha colado ao ouvido, torcia, dava opiniões e até interferiu na escalação da seleção brasileira. Impôs ao treinador esquerdista do time, o jornalista João Saldanha, o nome do atacante Dario, impetuoso e um tanto desastrado. Dadá Maravilha ficou no time, Saldanha foi mandado embora.

Outro contraste da personalidade do terceiro presidente-general no poder a partir de 1964 estava na retórica. Na sede da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), em Recife, Médici leu um discurso poético e pungente. Declarava-se solidário com os retirantes nordestinos, massacrados por mais uma seca inclemente, daquelas que, segundo a lenda, a cada século devastava a região, como a de 1877.
O texto é uma das mais bonitas orações ditas por um governante no Brasil. Seu autor, o então coronel Octávio Costa (depois promovido a general, já em comando de tropa), chefiava a AERP. Era uma assessoria direta do presidente com semelhança ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo de Getúlio Vargas, e algumas tintas da propaganda nazista criada por Joseph Goebbels (autor da famosa frase: uma mentira, repetida mil vezes, vira verdade).
Era preciso atender as levas de sertanejos tocados do interior pela fome e a miséria, e que se projetavam ameaçadoramente como vagas incontroláveis sobre as cidades do litoral e as ricas propriedades rurais da Zona da Mata. Guardado o papel do discurso, Médici ofereceu uma solução, em 1970: a Transamazônica.
Os nordestinos seriam recrutados para construí-la como peões e também seriam assentados às suas margens como colonos. Teriam trabalho, terra e renda. O governo de direita no Brasil lhes atenderia com aquilo que seria a bandeira das massas russas revoltadas contra o czarismo milenar, que, seis décadas antes, provocaram o surgimento do primeiro governo socialista do mundo.
O nordestino abandonado e maltratado, finalmente, se transformaria em dono do seu pedaço de chão, livrando-se do proprietário explorador. Não na sua terra natal. Na distante, desconhecida e misteriosa Amazônia.
Dois anos depois de ter dado partida à grande estrada de penetração ao interior da fronteira amazônica, Garrastazu Médici voltou a região, em fevereiro de 1973. Foi visitar um grande empreendimento agroflorestal e industrial (arroz, gado, caulim e celulose), o Jari, implantado pelo milionário americano Daniel Ludwig, com todas as bênçãos do governo brasileiro, próximo à foz do rio Amazonas, entre o Pará e o Amapá.
Deu-se o que parecia impossível: dezenas de peões fizeram uma ruidosa manifestação de protesto diante da comitiva presidencial, o que não acontecia nem nas cidades desde o AI-5, do final de n1968.
Não houve tempo para as assessorias — privada e oficial — impedirem a exibição de faixas e cartazes diante do general carrancudo e de óculos pretos. A imprensa, mantida sob controle em cubículos previamente delimitados, viu a cena, a fotografou e registrou. A censura teve que se submeter ao fato consumado.
Havia então 12 mil peões trabalhando nas obras do Projeto Jari, apenas um quarto deles vinculados à empresa de Ludwig. Os outros eram recrutados por agenciadores de mão de obra, os "gatos". Sem qualquer garantia social e, muitas vezes, sem receber, trabalhavam pesado durante muitos meses, derrubando floresta, plantando, construindo.
O governo teve que providenciar alguma coisa para reparar aquela situação, que alcançou repercussão internacional. Instalou um grupo volante para acompanhar as condições de trabalho, semelhantes às dos escravos da colônia (e do império). Até criou uma carteira de trabalho para atender o peão — mas só com parte das garantias sociais do homem urbano.
A manifestação do Jari não foi a primeira nem a última a traduzir a insatisfação contida e reprimida do ser humano nas distantes e esquecidas frentes pioneiras. Quase meio século antes, outros trabalhadores haviam feito um quebra-quebra bem maior na empresa de outro americano, este ainda mais célebre: Henry Ford.
De sua sede em Detroit, nos Estados Unidos, Ford impunha de tudo a quem trabalhava na sua plantação de borracha no vale do rio Tapajós, no Pará, de onde esperava extrair matéria prima para os pneus dos seus automóveis, que inundavam o mundo. Até a comida.
No cardápio elaborado por nutricionistas não constava a farinha de mandioca. Este, porém, era o item que não podia faltar no prato do caboco. Como faltou, os nativos se insurgiram e saíram destruindo o que encontraram pela frente. A farinha voltou. Mas Fordlândia não foi longe. Em 1945 Ford jogou a toalha branca, desistindo de produzir borracha em larga escala na Amazônia, 18 anos depois de se instalar na região.
Mais cinco décadas à frente, uma nova rebelião de milhares de trabalhadores ocorreria na maior obra que estava em andamento no Brasil na passagem dos anos 1970 para os 1980: a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins.
A comida servida nos refeitórios coletivos era ruim. Certo dia ficou insuportável. A carne foi amolecida à base de muito bicarbonato. Era colocá-la no prato e deixá-la de lado. Revoltados, os peões começaram a destruir o restaurante e a avançar sobre outros pontos do acampamento.
Centenas de homens da Polícia Militar foram transferidas às pressas de Belém para conter a rebelião. A comida então melhorou. Tornou-se pelo menos suportável. Nada, contudo, que nem de longe pudesse ser comparada ao menu oferecido para o staff das obras.Lado a lado, padrões de vida sueco e biafrense.
Novas revoltas ocorrem agora nas grandes obras da Amazônia. Não mais apenas na forma de explosões súbitas e de curta duração, como antes. Essas modalidades, mais violentas, se combinam com greves, antes praticamente impossíveis. É a continuidade de uma história marginal. Mas é também uma novidade, que precisa ser mais bem registrada e adequadamente entendida.

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