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terça-feira, 20 de setembro de 2011

A HISTORIA NÃO PODE SER FEITA PELO RETROVISOR

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Repressão à passetata em 1968: o pior estava por vir
"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época de acreditar, foi a época da incredulidade, foi a época da luz, foi a época da escuridão, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, estávamos todos indo direto para o paraíso, estávamos indo direto na direção oposta."
(Charles Dickens, Conto de Duas Cidades)

Virou lugar comum criticar a opção daqueles que pegaram em armas para lutar contra a ditadura. Com visão restrospectiva e experiência acumulada, é fácil deitar falação sobre as “ilusões armadas” e os equívocos trágicos da esquerda revolucionária. Mas é preciso ver as coisas em perspectiva histórica. Naqueles anos de chumbo, não estava claro, a não ser para o PCB, que a resistência armada levaria a esquerda ao desastre. Com o AI-5, as prisões e as torturas, a ditadura bloqueara qualquer alternativa de luta política legal. Também não se compreendia que o regime instaurado em 1964, repudiado nas ruas em 1968, lograra conquistar, a partir de 1970, a hegemonia sobre a “maioria silenciosa” do país, principalmente as classes médias, graças ao chamado “milagre brasileiro” – o crescimento econômico excludente. A sociedade estava anestesiada com o sonho de “Brasil grande” e a patriotada fascista do “ame-o ou deixe-o”. É certo que "a revolução faltou ao encontro”, para usar a expressão de Daniel Aarão Reis, mas isso só ficaria claro muito tempo depois. Não dá para analisar o passado exclusivamente sob a ótica do presente; não se faz a História pelo retrovisor.


O dia 17 de setembro marca os 40 anos do assassinato de Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército que desertou para se tornar líder guerrilheiro. A simples menção de seu nome ainda desperta paixões inflamadas, principalmente nos quartéis, pelo fato de ele ter desertado e, durante o cerco à guerrilha do Vale do Ribeira, matado a coronhadas um tenente feito prisioneiro para evitar que ele denunciasse a posição dos guerrilheiros às tropas do Exército.

Oficial brilhante, Lamarca abandonou tudo – inclusive família, que despachou para Cuba – para aderir ao sonho de um punhado de jovens “enlouquecidos de esperança” de derrubar a ditadura e instaurar um regime socialista no país. O fato de os regimes que inspiravam os revolucionários serem ditaduras burocráticas degeneradas não invalida a generosidade e a coragem daqueles jovens que arriscaram suas vidas, muitos dos quais tombaram, para combater a opressão e a injustiça.

Lamarca começou na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e terminou no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Liderou ou planejou as ações mais ousadas da esquerda armada contra o regime, de assaltos a bancos ao roubo do cofre do ex-governador paulista Adhemar de Barros, ação espetacular que renderia à guerrilha US$ 2,5 milhões. Comandou o seqüestro do embaixador suíço, que livrou da tortura e da morte 70 prisioneiros políticos. O ex-capitão instalou um foco guerrilheiro no Vale do Ribeira, conseguindo escapar do formidável cerco militar montado pelo coronel Erasmo Dias – que nunca o perdoou por isso. Lamarca foi caçado implacavelmente pelas forças da repressão de todo o país, até ser emboscado e morto em 1971 no sertão da Bahia, numa ação comandada pelo então major Nilton Cerqueira.


O capitão Lamarca dá aulas de tiro a bancários
Lamarca tinha uma concepção militarista da luta política, mas esse viés nunca embotou seu discernimento. Quando a VPR sequestrou o embaixador suíço, Giovanni Enrico Bücher, em 1970, e exigiu a libertação de 70 presos políticos, a ditadura engrossou e rejeitou soltar vários deles e ainda anunciou a morte, por “atropelamento”, do militante Eduardo Leite, o “Bacuri”, que tinha sido barbaramente assassinado sob tortura. O comando da VPR – organização que Jacob Gorender define como “o militarismo quimicamente puro” – queria executar o embaixador, mas Lamarca usou sua autoridade de comandante militar da operação para evitar que “a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR”, diz Celso Lugaretti, que foi companheiro de guerrilha do ex-capitão.

Lamarca foi um herói trágico de seu tempo. Nas palavras de Emiliano José e Oldack de Miranda, autores de sua biografia, “não foi o ‘assassino frio e sanguinário’ mostrado na imprensa por pressão do Exército, muito menos um ‘messias sem deus’ ou joguete da esquerda armada. [...] O capitão Lamarca absorveu a tragédia de seu tempo e viveu o drama, todo, de um período em que a tortura e o assassinato político eram métodos considerados normais pelo Estado brasileiro. [...] Duro é sacar o lance do oficial do Exército brasileiro, carreira brilhante à frente, que, inconformado, rasga sua farda e aposta noutro futuro: sonha com a humanidade livre, mete o peito resoluto em busca da liberdade e leva às últimas conseqüências o que julgava acertado”.

Ele merece mais que respeito; merece estar no panteão dos herois da pátria. Porque herois verdadeiros não são estátuas equestres de bronze; são seres de carne e osso, com vícios e virtudes.   

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